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Narcotráfico doméstico avança e ‘minicracolândias’ se espalham por bairros de Campo Grande

por editor
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Criança atropelada na Afonso Pena após briga de usuários expõe problemas que vão além do tráfico de drogas

O atropelamento do menino de 10 anos na última quarta-feira (3) na principal avenida de Campo Grande, a Afonso Pena, reacendeu as discussões sobre o problema do tráfico de drogas na região central. Isso porque o acidente só ocorreu após a criança correr em direção à rua para se afastar de uma briga entre usuários, que estavam com facão perto da calçada. O menino deixava a igreja Perpétuo Socorro com a família. O acidente expõe um problema que vai além do Centro, são as ‘minicracolândias’ que se espalham pela Capital, alimentadas pela concentração de usuários em bocas de fumo na periferia.

A criança vítima da briga entre os usuários continua internada na Santa Casa de Campo Grande. Ela teve dois ossos do crânio quebrados. O estado de saúde, até a semana passada, era considerado grave. O hospital não informa atualizações sobre a evolução do quadro da criança, que é informado para a imprensa pela família. A polícia espera alta do menino para que ele preste depoimento.

Em Campo Grande, bairros populosos conhecidos pela presença de usuários e pelo narcotráfico doméstico – como Tiradentes, Nhanhá e Aero Rancho – concentram esforços não só da segurança pública para combater as consequências desse problema social, mas dos moradores que ainda resistem em viver ali e aprenderam a lidar com os problemas causados.

Becos multiplicam usuários no Tiradentes

Moradora da região do Tiradentes desde que nasceu, dona de casa de 37 anos, que não quis se identificar, afirma que a presença dos usuários de drogas nos ‘becos’ já virou ‘costume’ para quem mora no entorno. Isso porque, segundo ela, o único incômodo é a presença deles, já que os vizinhos não são incomodados.

Homem carregando fios no Bairro Tiradentes. (Foto: Marcos Ermínio – Jornal Midiamax)

“Eles não mexem em nada, só ficam por aí, dormem e usam droga. O lugar mais complicado é perto do antigo prédio da OMEP (Organização Municipal para Educação Pré-Escolar), mas antigamente não tinha tanto usuário assim, começou depois que eles se reuniam perto do campinho e com esse prédio abandonado”, afirma.

Na opinião da dona de casa, os usuários não devem sair da região tão cedo, já que é costume dos moradores fazer doação de comidas e outros mantimentos. “Aqui o pessoal é tudo unido, então acabam ajudando. Eles são uns coitados, fazem cabaninha e ficam por aqui. Mas em todo bairro que você vai têm pessoas assim”, opina a moradora.

Entretanto, a poucas quadras dali, um aposentado de 77 anos, que também pediu para ter a identidade preservada, mudou-se da Avenida Rouxinóis para uma casa ao lado do prédio usado como abrigo para os usuários. Para ele, a concentração da população em situação de rua no imóvel gera outros transtornos, como furtos, gritaria e até incêndios.

Prédio da Omep é utilizado por usuários de drogas. (Foto: Marcos Ermínio – Jornal Midiamax)

“Essa semana eu paguei R$ 20 para um deles tirar o lixo daqui da frente, porque o cheiro é insuportável, entra dentro de casa. Se eles queimam fio e colocam fogo, queima minha parede aqui. A Prefeitura já veio limpar, mas eles enchem de lixo de novo. Fora que serve de criadouro para o mosquito-da-dengue, e não adianta nada a gente limpar nossas casas”, opina o aposentado.

Ainda segundo ele, os moradores ao redor até chegam a pedir para que os usuários não deixem tanto lixo no imóvel, mas há cerca de um ano o morador teve que acionar o Corpo de Bombeiros quando um incêndio atingiu o prédio e condenou parte da estrutura. “Eles colocaram fogo em armários que tinham numa sala, foi subindo para as paredes e agora só resolve se vier uma máquina e demolir”, afirma.

Segundo o aposentado, a presença da Polícia Militar é constante, mas a concentração de bocas de fumo nos ‘becos’ faz com que os usuários apenas se escondam com a presença policial. “Eles podem passar 50 vezes, os usuários voltam. O que não falta aqui é boca de fumo, parece que são eles que mandam no bairro. O restaurante aqui do lado até fechou, não conseguiam vender salgado com esse cheiro”, afirma.

Conforme o tenente Julien Marcos de Jesus, comandante do pelotão Tiradentes, da 6ª CIPM (Companhia Independente de Polícia Militar), foram intensificadas as operações na região como estratégia para mapear e fiscalizar os conhecidos ‘becos’ do bairro, já que esses locais são caracterizados pelas ruas estreitas e sem saída. Em alguns deles, sequer a viatura da PM consegue passar.

“No mês de abril contamos com o apoio do GPA (Grupo de Patrulhamento Aéreo) para sobrevoar a região e coordenar as viaturas embaixo. Essa parte dos ‘becos’ é justamente onde passou o asfalto e ficou esse ‘núcleo’ entre vários outros bairros, que vêm crescendo, inclusive no número de comércios, nas avenidas Marquês de Pombal e José Nogueira Vieira”, explica.

Outra característica do tráfico de drogas na região, segundo o tenente, é a reincidência do crime entre moradores da mesma casa e mesma família. “A gente percebe que o tráfico envolve a família toda. Quando prendemos alguém da casa, outra pessoa continua, seja o pai, o irmão, ou outro familiar. São famílias que vivem do crime. Acontece de fazermos apreensão de adolescentes, mas dias depois novamente outro membro da família é preso”, afirma.

Na Nhanhá, tráfico ‘formiguinha’ domina

Resistente em manter comércio de eletroeletrônicos no Bairro Vila Nhanhá, um casal de comerciantes – ele de 49 anos e ela de 42 – permanece já há um ano. Para garantirem um pouco mais de segurança, eles mudaram para uma casa ao lado do comércio, já que o furto de fios e residências na região é constante.

As grades em volta da loja também servem de ‘sistema de segurança’ e a expertise de identificar quando usuários de droga oferecem produtos que podem ter sido furtados das casas do bairro, faz com que o casal permaneça no ponto comercial. Enquanto o Jornal Midiamax estava no local, conversando com os comerciantes, um dos usuários chegou a abordar o morador de 49 anos, sem sucesso em receber algo.

“Mas eles não roubam aqui no centro, nesse núcleo perto das bocas de fumo, não. A ordem dos traficantes é não roubar próximo. Uma obra aqui perto, por exemplo, até hoje não roubaram nada deles, e eles deixam material para fora. Eles só entram em casas da redondeza”, afirma o morador.

(Foto: Marcos Ermínio – Jornal Midiamax)

Apesar da presença policial também ser constante na região, o comerciante explica que todos os moradores sabem que, devido à maioria dos que perambulam pelas ruas serem usuários de drogas, são raras as chances de ficarem presos. “É pouca coisa, então não dá para os policiais prender. Eles até tomam, jogam fora, mas a maioria aqui é usuário”, afirma.

Entretanto, a comerciante de 42 anos afirma ter percebido aumento na violência entre os próprios usuários, há cerca de um ano. “Antigamente não tinha tanta briga. Depois que fecharam a antiga rodoviária eles vieram para cá. Agora, vira e mexe a gente fica sabendo que um esfaqueou o outro, jogou dentro do córrego ou até morte”.

Outro morador do bairro há 40 anos, que também não será identificado, afirma que o maior problema, na opinião dele, são os ferros-velhos instalados na região, que compram produtos furtados. “Essas reciclagens compram tudo que é roubado. O que mais tem aqui é boca de fumo, ninguém trabalha, parece que vivem disso. Tem dias que têm mais policiais do que morador aqui, mas é virar as costas e eles reaparecem”, afirma.

O morador relembra que já chegou a ajudar um casal que foi roubado no ponto de ônibus, há cerca de 1 ano. “Vi um casal gritando que o bandido tinha apontado arma para eles, acho que ele percebeu que era de brinquedo e pulou em cima do cara. Um conseguiu fugir, mas a gente conteve ele e chamamos a polícia. No final, um policial rodoviário federal que estava passando com o carro particular foi quem ajudou a gente”, explica.

Além disso, os imóveis abandonados já foram símbolo de status para moradores da Vila Nhanhá, mas atualmente servem apenas de abrigo para que usuários consumam os entorpecentes. “Tinha uma mansão aqui no bairro que tiveram que demolir. O dono morreu, os filhos não conseguiram vender e os usuários invadiram”, relembra.

A região mais populosa da Capital, que inclui bairros como Aero Rancho, Los Angeles e Vila Nhanhá, é também a com maior quantidade de mandados de prisão cumpridos, segundo o tenente-coronel Anderson Padilha, comandante do 10º BPM (Batalhão da Polícia Militar). Nos últimos dois meses foram cumpridos cerca de 70 mandados na região do Anhanduizinho.

“A gente pede para a população ligar principalmente no 181, que é o disque denúncia, para que nosso serviço de inteligência possa fazer o levantamento de onde estão essas bocas de fumo na região e chegarmos nos grandes traficantes. O que ocorre com frequências nos bairros daqui é briga entre eles e entre facções”, afirma o comandante.

O tenente-coronel ainda explica que, frequentemente, é feito o levantamento de possíveis imóveis abandonados nos bairros a fim de identificar os donos, já que usuários acabam utilizando desses espaços para se esconder e até praticar a venda de drogas. Na região do Anhanduizinho, os três bairros com maior incidência de tráfico de drogas doméstico são Vila Nhanhá, Aero Rancho e Lageado.

Além destes, o prolongamento do Rio Anhandui, que passa pela Avenida Ernesto Geisel, é outro ponto de atenção da região. Moradores em situação de rua e usuários costumam utilizar das margens para montar acampamentos e traficar. “A gente sempre tem procurado a Prefeitura para solicitar a limpeza em volta do rio. É comum vermos fogueirinhas feitas no local, principalmente à noite, onde podem estar queimando fios furtados para vender o cobre, por exemplo”, explica.

A concentração do problema nas margens do rio, entretanto, se espalha pelos bairros ao redor, já que a utilização do espaço gera insegurança nos moradores e desvalorização dos imóveis. “O ambiente vai ficando degradado e até os moradores sofrem com essa situação, geralmente estão andando e são abordados pelos usuários”, afirma o tenente-coronel.

(Foto: Marcos Ermínio – Jornal Midiamax)

Narcotráfico doméstico e as ‘minicracolândias’

Desde a mudança da lei 6.368 de 2006, os crimes de posse ou porte de drogas para uso pessoal não é mais passível de prisão. Conforme explicado pelo advogado criminalista Gustavo Scuarcialuppi, o entendimento da legislação é de que não existe bem jurídico atingido com o uso de droga.

“No tráfico, por exemplo, nós temos o bem jurídico atingido que é a saúde pública. No caso da pessoa usar sozinha, não tinha um bem jurídico além do próprio corpo dela. Então o direito penal não pode entrar em algo que não afete outras pessoas”, explica.

Dessa forma, Gustavo explica que o porte ou a posse de droga para uso pessoal continua sendo uma infração penal, mas não passível de prisão. As penas previstas são medidas socioeducativas ou prestação de serviço público. “Por isso, se o indivíduo ao final do processo nunca vai poder ser preso, fica vedada a prisão em flagrante. O que é feito na prática é o encaminhamento dele para a delegacia, para ele assumiu um TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência), para comparecimento em juízo”, detalha.

Segundo o delegado titular da Denar (Delegacia Especializada de Repressão ao Narcotráfico), Hoffman D’Ávila, há cerca de um ano a delegacia começou a dividir o combate ao narcotráfico doméstico por região urbana. Em 2023, já foram duas operações policiais realizadas na Região Anhanduizinho, além da Operação Smoke House, deflagrada em toda Capital.

“Fazemos um levantamento das bocas de fumo por região, às vezes demanda um ou dois meses de trabalho de campo e inteligência para materializar, já que precisamos representar por medidas cautelares, como mandados de busca e apreensão e prisão. Dividindo por região conseguimos um resultado com mais eficácia e fechar ao mesmo tempo várias bocas de fumo, dando uma resposta mais abrangente para a população. Na última [na região do Anhanduizinho] foram 19 presos, nove em flagrante, sendo um adolescente, e uma arma de fogo retirada de circulação”, explica o delegado.

Ainda conforme explicado pelo delegado, mesmo que as apreensões em bocas de fumo sejam de pequenas quantidades de drogas – e por isso a nomenclatura de “tráfico formiguinha”, utilizada pela Denar – esse tipo de crime fomenta outros de maior periculosidade, como crimes contra o patrimônio, violência doméstica, lesão corporal e até mesmo estupro.

“Se você fecha uma boca de fumo com pequena quantidade de droga, aos olhos da população pode parecer pouca droga que foi tirada de circulação, mas você também tira o traficante, adolescentes… Uma boca de fumo gera intranquilidade imensa na vizinhança. Às vezes apreender uma carga de maconha ou cocaína na estrada é importante, mas temos que focar mais no tráfico doméstico”, afirma Hoffman.

Operação permanente da Polícia Civil contra ‘minicracolândias’

O delegado-titular ainda explica que a Operação Ômega, iniciada também há cerca de um ano, tem caráter permanente e visa combater o tráfico em pequenas quantidades.

“O tráfico ‘formiguinha’ está se espalhando pela Capital. O traficante utiliza de pequenos fornecedores, geralmente eles não ficam com muita droga no local, mas estão incomodando a população, a vizinhança e os comerciantes. Esse tipo de tráfico inclusive alicia adolescentes a adentrarem no mundo criminoso”, explica Hoffman.

Bairros considerados com concentração de bocas de fumo. (Gráfico: Madu Livramento – Jornal Midiamax)

Apreensões de cocaína e maconha em Campo Grande

Conforme dados da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), foram apreendidos 4.647 quilos de maconha só do dia 1º de janeiro deste ano até a última sexta-feira (5). Ao longo de todo 2022, foram 90.681 quilos, a maior quantidade apreendida nos últimos cinco anos, desde 2019.

O número de apreensões de maconha, por quilo, registrados na Capital durante 2022 é maior do que os anos de 2019 e 2020 juntos. Enquanto em 2019 foram apreendidos 29.734 quilos, em 2020 foram 56.831 quilos.

Em março de 2022 foram três grandes apreensões de cocaína em Campo Grande, que fizeram com que o mês fosse classificado como o com o maior número de apreensões durante todo o ano.

A primeira foi feita no dia 8 de março, quando um caminhoneiro foi preso em flagrante pelo Dracco (Departamento de Repressão à Corrupção e ao Crime Organizado). Ele transportava 483,60 quilos de cocaína em caixas de cerveja, droga avaliada em mais de R$ 11 milhões e que possivelmente chegaria até a Europa.

No dia 20 de março, outra grande apreensão aconteceu em Campo Grande. Piloto de 59 anos foi preso quando passava no espaço aéreo da cidade, em uma aeronave particular carregada com fardos de cocaína. Foram apreendidos 465 quilos da droga, avaliada em mais de R$ 11 milhões.

Em 23 de março, um rapaz de 20 anos, além de outros três homens de 35, 38 e 39 anos, foram presos com 88,4 quilos de cocaína na Capital. Eles transportavam a droga em um ‘mocó’ no caminhão, serviço arquitetado e feito por serralheiros. A apreensão foi feita em conjunto entre a Denar e a PRF (Polícia Rodoviária Federal).

Já as apreensões de cocaína bateram recorde no ano de 2022 em Campo Grande. Nos últimos cinco ano, o ano passado teve apreensão maior do que os anos de 2019, 2020 e 2021 juntos. O ano de 2023 já somou 1.989 quilos de cocaína apreendida, número maior que todo 2019 – que registrou 1.333 quilos – e todos os meses de 2020 juntos – quando foram apreendidos 1.252 quilos de cocaína na Capital.

Midiamax

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